
O dia acordou cinzento, eu também. Nunca o tempo me representou tão bem. Ambos oscilamos entre nuvens escuras e raios de sol quentes sem nunca saber o que esperar a seguir. Acordei já dentro da lista de afazeres, mecânico, finanças, supermercado, a coreografia repetitiva e exaustiva da vida de adulto. Aquela que ambicionámos durante tantos anos por acharmos que significaria liberdade, autonomia e todo um mundo de opções. It’s a trap. A única verdade que me contaram quando a vida adulta chegou é que eu poderia escolher. Talvez a única em que ninguém acredita. Mas 14 anos depois de atingir a maioridade sei que de facto, temos poder para escolher a cada minuto o que fazer, por onde ir, como reagir. E isso já é muito.
Não me deixei tombar pela cor do céu e fiz o oposto do que me apetecia, levar as cadelas à praia. Arrastei-me lenta e contrariada e assim que lá chegámos só disse “Hoje não me peçam nada”. Sentei-me e insisti que não se deixassem atrapalhar por mim. Vão, vivam, eu hoje não consigo. Entretanto comecei a reparar na minha fraca figura, sentada no areal da praia num sábado de manhã, o mar em frente, rasgos de sol a aquecerem-me o corpo e os dois cães mais giros do mundo à espera que eu me apercebesse do que estava a perder mas ainda assim a aceitar o que tinha para dar.
Não consegui fingir a animação para as rotinas do costume mas relembrando as coisas simples que me fazem bem, pensei na meditação que faço todos os dias ao acordar com a Margarida Madeira. “Os sons funcionam para mim” disse eu um dia destes numa das sessões. Então vou focar-me nisso. Fechei os olhos, agradeci por momentos o facto de o poder fazer sabendo que elas não se afastariam mais de dois ou três metros da minha perna e foquei-me no barulho das ondas, tentei imaginar se estariam a ir ou a vir, perto ou longe, com ou sem espuma.
À medida que o fazia a cabeça ficava mais leve e ao abrir os olhos vi algo raro, a Mali a saltitar pela areia, pauzinho na boca, sozinha e feliz. Repito, sozinha! A Mali não é uma cadela com grande iniciativa, adora aventurar-se mas sempre com companhia, sempre foi muito calma e a sombra da mais velha que naquele momento já dormitava de cabeça enfiada por baixo da minha perna. Eu e o tempo, agora bem menos cinzentos, deixámos que a gordinha, pela primeira vez, tomasse conta do papel principal. Momentos depois chega uma cachorra vivaz e eu vejo a Mali, que é habitualmente pouco sociável e rabugenta, a correr e a ladrar mas desta vez num tom diferente como quem diz “Anda! Alguém que me tire deste tédio”. Correu, brincou, roubou bolas e no fim, ainda hesitou quando me viu virar as costas para irmos embora. Que audácia. Good for you gordinha!
O meu estado era o mesmo, ainda a arrastar o que parecia agora ser um peso mais leve mas que ainda assim custava a carregar. Voltámos a casa e no caminho só conseguia pensar no incrível que é deixar fluir. Os cães ensinaram-me a não remar contra a maré, sentar, aceitar e deixar assentar o que é. No fundo acho que é nesse mesmo lugar que todos encontramos o que tanto procuramos, não é a felicidade, também não é um tesla, é a paz.
Bem dito foi o dia em que aceitei aprender com os cães. E que eles tenham sempre esta paciência e a generosidade de me aceitar e continuar a mostrar a melhor vida, a que eu quero para mim, a Vida de Cão.
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